PEC DAS DROGAS - FACT

A PEC das Drogas e o racismo anunciado

O impacto da votação na vida da população mais vulnerável do país

A PEC 45 ou PEC das Drogas (Proposta de Emenda Constitucional) que foi aprovada em segunda instância no dia 16 de abril pelo Senado Federal, por 52 votos a favor e nove contra, além de ser uma resposta de embate com o STF (Supremo Tribunal Federal), que retomou nos últimos dois anos a votação do RE 635659, que trata sobre a descriminalização do porte de drogas, ela institucionaliza o racismo e torna constitucional a violenta guerra às drogas.

Durante o debate da votação da PEC, a presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB (Organização dos Advogados do Brasil), Silva Souza, explicou claramente a diferença das matérias em votação no STF e no Senado.

“É bastante importante situar o debate para que não façamos nenhum equívoco do que nós estamos falando, não estamos discutindo descriminalização de drogas nenhuma, nem de maconha nem de qualquer outra. Estamos discutindo a possibilidade de criminalização do usuário”, esclareceu a presidente.

Para a mestre em antropologia e ativista em diversos coletivos antiproibicionistas, Luana Malheiros, a aprovação da PEC fortalece a guerra às drogas.

“O maior perigo é que agora com essa PEC a gente tenha uma mudança na Constituição. Nenhum país do mundo tem a guerra às drogas na sua constituição e nós corremos o risco de ter, justamente por estar criminalizando todos os usuários e assim fortalecendo o combate e as ações policiais em cima de um recorte da população, que já sabemos qual é: pessoas pretas, pobres e periféricas”, pontua Luana.

Após a votação em dois turnos que aconteceu no Senado, a PEC segue para a câmara dos deputados federais e precisa ser aprovada em dois turnos por três quintos dos deputados. 

O passo seguinte, se provocado, é passar pela revisão do STF, que é a instituição responsável por avaliar se a proposta é constitucional.

Por que a PEC é inconstitucional?

Por se tratar de uma Proposta de Emenda Constitucional, a matéria em questão tem o objetivo de alterar o texto da Constituição Brasileira, propondo que seja considerado crime previsto na Constituição o uso de substâncias ilícitas. Lembrando que no Brasil cerca de 20 milhões de pessoas são usuárias de drogas.

Porém, segundo especialistas juristas, o que está sendo proposto é a criminalização de um ato que diz respeito a uma escolha pessoal do indivíduo, no caso, o uso de substâncias. 

Entretanto, essa PEC viola o artigo quinto da Constituição, que define as cláusulas pétreas sobre a garantia e direitos individuais de privacidade, intimidade e proporcionalidade.

“É muito triste pra nós que trabalhamos com a defesa dos direitos humanos, pra quem é jurista, enfim, para sociedade brasileira como um todo ver a possibilidade de ser inserido no artigo quinto, que é o artigo que trata das garantias e dos direitos fundamentais, uma previsão de criminalização. O artigo quinto traz pra nós direitos inegociáveis duramente conquistados após a ditadura, o direito à liberdade, à vida. Não é nesse artigo que se insere uma reprimenda, uma restrição”, defendeu a presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB (Organização dos Advogados do Brasil), Silva Souza

Mas afinal, qual a relação da PEC das Drogas com o racismo?

Desde que a Lei de Drogas foi criada em 2006 o seu texto estabelece que é crime vender, transportar ou fornecer drogas, ou seja, a prática do tráfico, cabendo pena de reclusão de cinco a 15 anos, além de multa.

A Lei aboliu a pena de prisão para usuário, considerando o porte para o consumo um crime mais brando, com penas de prestação de serviços e medidas educativas.

Porém, a Lei em vigor não estabelece uma quantidade de entorpecentes que diferencie os dois delitos: usuário e traficante, ficando a cabo da polícia e dos juízes essa distinção, de acordo com a relação dos fatos descritos pelos policiais presentes no ato.

Porém, na prática, o que vimos ao longo desses quase 20 anos de aplicação desta Lei é que houve um encarceramento em massa de pessoas pretas, pobres e moradoras das periferias brasileiras, dados que podem ser analisados pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

“A aplicação da Lei de Drogas pelo sistema de justiça brasileiro atinge de maneira desproporcional as pessoas negras no Brasil, enquanto privilegia pessoas brancas nas garantias processuais. À medida que a população brasileira é composta por 57% de pessoas negras (pretos e pardos), entre os réus processados por tráfico de drogas, 68% são negros. No que diz respeito à cor/raça branca, representa 42% da população e apenas 31% dos réus são processados por crimes envolvendo drogas”, trecho publicado no site do IPEA em outubro de 2023.

Esses dados deixam evidentes que existe um viés racista quando o assunto é porte de drogas.

“É imperativo concluir que a raça constitui uma variável relevante para a compreensão dos processos de criminalização secundária por tráfico de drogas, tanto no sentido de que o fato de uma pessoa ser negra aumenta sua probabilidade de ser criminalizada quanto no sentido de que a pessoa ser branca atua como proteção a essa mesma imputação”, diz o estudo.

A proposta da PEC é reforçar a vista em cima dos usuários de drogas categorizando-os como criminosos por estarem portando drogas. 

“Já existe uma ordem de criminalizar o tráfico. Agora querem repetir o raciocínio para colocar uma ordem de criminalizar o usuário. Porém na prática: como os crimes não são investigados pela polícia civil; as apreensões ocorrem sempre em contexto de flagrantes decorrentes de abordagens do policiamento ostensivo; e como o Poder Judiciário chancela como prova os testemunhos destes policiais que fazem as apreensões a tendência é continuar havendo injustiça contra usuários pobres e de regiões vulneráveis, pois continuará valendo o testemunho policial com a conivência do Poder Judicial, prendendo-se usuários como se traficantes fossem”, destaca Konstantin Gerber, advogado e membro da Comissão Técnica Jurídica da Associação Brasileira de Estudos da Cannabis – SBEC

Qual a relação da PEC com o uso medicinal e as consequências para as associações? 

O crescimento do movimento associativista tem ocorrido em sua maioria na prática da desobediência civil, apesar do alto preço da criminalização. 

Poucas são as associações ou pacientes que possuem Habeas Corpus, uma medida judicial que protege a liberdade de quem está cultivando para uso medicinal.

Diversos pacientes e líderes associativistas já foram enquadrados nos artigos da Lei de Drogas, alguns conseguiram comprovar o uso medicinal, mas ficaram marcados pelo sistema de justiça. 

É o caso de Ângela Aboin que precisou enfrentar a justiça algumas vezes para comprovar o cultivo da planta para tratamento de sua filha com espectro autista. 

Ao longo de quase seis anos, Ângela conquistou mais de 06 Habeas Corpus, todos através da defensoria pública do Estado. O julgamento mais recente concedeu a ela o direito permanente de plantar o remédio da sua filha.

“Antes do enfrentamento da justiça criminal temos as violências do tribunal de rua e o enfrentamento a violência policial. A PEC vai na contramão do mundo e da cultura do acesso à terapêutica da cannabis, os pacientes que necessitam do uso inalado serão ainda mais perseguidos. Como podemos achar normal criminalizar e incluir como quadrilha quem ajuda uma situação tão extrema de saúde? A Fact conta com mais 40 associações que são responsáveis por atender milhares de pacientes. O associativismo no Brasil tem feito o papel do Estado em termos de saúde pública. Muitos pacientes recebem das associações, inclusive, tratamento de forma gratuita. Essa PEC representa uma falta de humanidade a todos aqueles que fazem uso da maconha”, desabafa Ângela, atual coordenadora geral da FACT Brasil e diretora da associação Mãesconha.

Ainda que o texto da PEC considere o uso medicinal como isento de crime, para a médica Andréa Gallassi, professora da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora da Cannabis, vai repercutir negativamente na vida do usuário medicinal.

“Ela dificulta sim o uso medicinal de cannabis ou maconha, como queiram chamar. Por mais que o texto dessa PEC contemple o uso medicinal, imaginem para o profissional que vai prescrever um medicamento que criminaliza o usuário, essa conduta desencoraja tanto o profissional que prescreve como o paciente. Cria-se um medo, uma atmosfera desfavorável para validar o tratamento com cannabis e isso vai acabar empurrando o paciente para escolhas de medicamentos convencionais que não são tão eficazes para sua saúde”, pontua Andrea.

A quem interessa a proibição e a manutenção da guerra às drogas?

Considerando que nos quase 20 anos de aplicação da Lei de Drogas no Brasil, sob o viés do combate ao tráfico, não houve nem a diminuição do uso de substâncias ilícitas e tão pouco a diminuição do tráfico, fica fácil concluir que a guerra contra às drogas é uma tática fracassada.

A conta que a sociedade paga com essa ineficiente guerra é bastante alta. 

“Em um ano, as instituições de segurança pública e do sistema de justiça criminal dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo gastaram mais de R$ 5,2 bilhões com a política de proibição das drogas. Este é o resultado da pesquisa Um Tiro no Pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo que calcula, pela primeira vez, as despesas governamentais com as instituições que formam a linha de frente do Estado na repressão armada e na aplicação da Lei de Drogas”, dados apontados pelo projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, coordenado pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania).

Além disso, essa guerra provocou um aumento significantivo no encarceramento e na morte de jovens negros, moradores de favelas e periferias. O combate ao tráfico de drogas é a justificativa para incursões policiais com forte armamento bélico nas favelas no país.

Na contramão dessas mortes e prisões, enquanto jornais do Brasil anunciam as apreensões gigantescas de drogas com envolvimentos de parlamentares e  assessores bolsonaristas, o alto escalão brasileiro segue ileso.

Seguem alguns exemplos:

“O maior traficante do Brasil e, individualmente, um dos maiores do planeta, Luiz Carlos Rocha, o Cabeça Branca, responsável, até ser preso em Sorriso (MT), em 2017, por mandar entre 80 e 100 toneladas por ano para fora do país e lavar parte de seus lucros com o doleiro Alberto Youssef, um dos principais delatores da Lava Jato”, trecho extraído da matéria escrita por Vasconcelo Quadros para a Agência Pública em 2020.

Uma das pautas mais criticadas do atual governo é referente a privatização dos presídios e o fortalecimento das comunidades terapêuticas, que nada mais são que o retorno dos manicômios, instituições duramente criticadas pela prática de violência contra os internos.

Com a aprovação da PEC e apoio da Lei de Drogas, estima-se um super encarceramento da população preta, como já vem acontecendo massivamente nos últimos 20 anos, o que vai ao encontro do objetivo de lucrar de qualquer instituição privada, além  das internações compulsórias de usuários nas comunidades terapêuticas. 

Como a sociedade pode se movimentar para impedir a aprovação final da PEC?

Como a PEC ainda não está 100% aprovada é preciso que a população consciente do atraso e da onda de violência, que será ainda maior caso ela entre em vigor, ajude na mobilização popular para que se pressione os deputados federais numa votação contrária à PEC.

Por isso, conversar sobre o tema, educar, informar o maior número de pessoas possível sobre a arbitrariedade e os perigos sociais dessa PEC é urgente.

Pressionar parlamentares sobre posicionamento deles diante dessa situação também é urgente.

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