Fact expõe falhas do proibicionismo na audiência do STJ

Fact expõe as falhas do proibicionismo na audiência do STJ

O tema do debate era sobre a possibilidade de importação de sementes e plantio do Cânhamo para fins medicinais e industriais.

No dia 25 de abril a Fact Brasil participou da audiência pública promovida pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) a pedido da ministra Regina Helena Costa para debater, ao lado de representantes de órgãos públicos, entidades privadas e do terceiro setor, a possibilidade de importação de sementes e plantio de variedades de Cannabis sativa com baixo teor de Tetrahidrocanabinol (THC) para a produção de medicamentos e outros subprodutos com fins exclusivamente medicinais, farmacêuticos ou industriais.

O tema da audiência foi objeto do Incidente de Assunção de Competência 16 (IAC 16), instaurado em 7 de março de 2023 na Primeira Seção, que tem como relatora a própria ministra.

Para a ministra o tema da audiência é de relevância jurídica, econômica e social, cujo objetivo foi subsidiar os membros da Primeira Seção com informações técnicas e científicas para o julgamento do IAC. 

Foram selecionados 24 expositores para as falas, sendo sete contrários e os demais favoráveis à matéria em questão.

As falas dos participantes versaram sobre os potenciais benefícios do uso da cannabis medicinal, não só à saúde, mas à indústria e ao sistema econômico e sobre os possíveis perigos da autorização indiscriminada para importação de sementes e plantio. 

Além da coordenação geral da Fact, representada por Ângela Aboin, estavam presentes duas instituições que fazem parte da federação, a Rede Reforma, na presença do advogado Emílio Figueiredo e a associação Sbec (Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis), na presença da médica psiquiatra e diretora geral da Sbec, Dra Eliane Nunes, e do advogado da associação, Konstantin Gerber.

A importância da variedade de produtos de cannabis

Dra Eliane fez questão de frisar que enquanto muitos alegam que não há evidência científica sobre os benefícios do uso terapêutico da cannabis, ela recorda de um importante e pioneiro estudo sobre a eficiência do óleo artesanal para tratamento de crianças com espectro autismo.

“Eu fiz parte do primeiro estudo duplo cego randomizado com óleo artesanal de cannabis da associação Abrace para uso em crianças com autismo, então quanto falam que não tem evidência científica temos esse artigo que foi publicado em revista internacional mostrando que óleo com proporção de 10 parte de CBD para uma de THC era efetivo”, explica Dra Eliane.

Ela aproveitou para destacar sobre a importância dos produtos das associações, que por serem remédios cumprem a função de serem uma alternativa terapêutica para além dos medicamentos.

“Como médica prescritora eu preciso ter possibilidades de produtos, as associações fornecem remédios, assim como também preciso das possibilidades de medicamentos, que seguem outra linha de produção e portanto, de indicação clínica. Todo esse contexto sem informação e sem regulamentação torna esse cenário confuso. Falta apoio para pesquisa, temos um gasto milionário em judicialização para tratar pacientes pelo SUS, a prescrição não é ampla colocando o THC no rol de substâncias proscritas. Eu como médica vou lutar para salvar vidas. Não é possível ter apenas o CBD como alternativa terapêutica regulamentada. Tanto a  regulamentação do cânhamo como a medicinal devem caminhar juntas”. reforça a médica.

Alinhamento da regulamentação da cannabis

Em seguida, Konstantin Gerber, advogado da SBEC elucidou sobre os desencontros entre as regulamentações técnicas da Anvisa e o entendimento da Lei de Drogas tanto para os Ministérios da Justiça, como da Saúde e da Agricultura. 

Ele aproveitou para apontar que é preciso que as associações de pacientes e grupos de comunidades tradicionais devam ter uma condição diferenciada de regulamentação para a produção de seus produtos, sem o mesmo rigor técnico das empresas produtoras de medicamentos, no caso, a indústria farmacêutica.

Ao que tudo indica, o rigor proibicionista da Lei de Drogas, mesmo que abra precedente para o uso medicinal e científico da planta, dificulta a elaboração de regulamentações que sejam coerentes para o bem comum da sociedade, seja no aspecto do acesso aos produtos de cannabis de forma democrática e segura, seja para a produção da ciência e do desenvolvimento de produtos da indústria em geral.

O advogado Emílio Figueiredo, representando a Rede Reforma, que vem se dedicando ao tema há mais de 15 anos, faz uma retrospectiva dos processos regulatórios da cannabis no âmbito mundial.

Ele iniciou sua fala argumentando que a Convenção Única de Entorpecentes de 1961, promovida pela ONU (Organização das Nações Unidas), afeta o julgamento em questão de duas formas, tanto no aspecto medicinal como no campo industrial.

A Convenção inclui a cannabis em duas categorias. A lista um coloca a planta como substância entorpecente para uso medicinal e na lista quatro como substância entorpecente sem o uso medicinal.

Em 2020, a pedido da OMS (Organização Mundial da Saúde), a cannabis foi retirada da lista quatro, portanto, no plano internacional a cannabis só está na lista de substâncias entorpecentes para uso medicinal.

A própria Anvisa, que vem criando mecanismos para facilitar o acesso aos produtos através de suas RDCs (Resolução de Diretoria Colegiada), reconhece que a Lei no Brasil tem um caráter proibicionista baseada nas Convenções da ONU de 1961 e 1971 e alega que ainda faltam mais estudos que comprovem a eficácia dos produtos de cannabis.

Porém, o plantio de cannabis para produção de pesquisa e ciência, segue proibido.

A história do Cânhamo no Brasil e o proibicionismo da planta

Emílio relembrou que a história do plantio de cânhamo no Brasil vem de 1747,quando foram espalhadas sementes da planta pelos solos de Santa Catarina e Pernambuco para produção de papel, tecido entre outros produtos.

Curiosamente, nessa época, era a própria polícia de Portugal que supervisionava o envio dessas sementes para o Brasil, inclusive, ensinando através de manuais de cultivo como fazer o plantio.

Entre os anos de 1788 e 1824, a própria Coroa Portuguesa administrou uma empresa para a produção de linho feito de cânhamo no sul do Brasil.

Foi a partir de regulamentações proibitivas, como a primeira delas em 1830 chamada de Lei Pito do Pango, que prendia pessoas, principalmente as negras, por fumarem maconha, que os plantios de cânhamos foram se diluindo, enquanto a proibição em torno da planta avançava.

Ao longo dos anos, essa perseguição à planta foi ficando cada vez mais acirrada e evidente e o Brasil passou a seguir o modelo internacional, arquitetado pelos EUA, de combate às drogas, entre elas a maconha.

Na contramão do proibicionismo, muitos pesquisadores e cientistas, ainda na década de  60, acusaram o Estado de estar sendo rígido demais com a proibição do plantio de cânhamo. 

A própria Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) produziu um relatório sobre o Cânhamo no Brasil na década de 90 sobre a viabilidade do seu uso industrial no Brasil.

“Todo esse debate em torno do uso industrial está acontecendo principalmente por questões morais. Não há questões técnicas, não estamos falando de uma nova espécie, o plantio de  cannabis é uma tecnologia ancestral. Essas sementes já estão no Brasil há décadas e isso não é impedimento para barreiras fito sanitárias, inclusive temos milhares de Habeas Corpus que autorizam o cultivo de pacientes medicinais. Há pesquisadores que defendem que a cannabis foi a primeira planta a ser administrada para fins agrícolas há mais de 12 mil anos e que, portanto, acompanha a história da humanidade fornecendo papel, fibra, roupas e remédio”, explica Emílio.

Diante desse cenário, o mais importante é que não se coloque na mesma régua o uso industrial e o uso terapêutico, pois este último está relacionado com o direito à saúde, a qualidade de vida, que vem se tornado cada vez mais assíduo desde 2013.

A importância da representação federativa das associações

As associações vêm se consolidando no cenário nacional como uma das mais importantes vias de acesso ao tratamento com cannabis. 

Muitas seguem atendendo pacientes praticando a desobediência civil, pois das mais de 100 associações existentes, cerca de 10 apresentam proteção judicial para poder plantar e manipular produtos derivados da planta.

Ainda assim, mesmo realizando parcerias com importantes instituições de pesquisa, como  universidades, a Embrapa e a Fiocruz, as associações de cannabis têm feito seu heroísmo frente ao negacionismo e proibicionismo da terapêutica da cannabis e muitas vêm sendo punidas por garantirem o acesso.

Nesse contexto, o associativismo federativo se destaca como meio de promover os direitos humanos e a democracia, princípios fundamentais estabelecidos na Carta de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. 

O associativismo federado não apenas facilita um controle social institucionalizado e democrático, mas também promove o diálogo, apoio e transparência das associações e fortalece a ciência. 

Nesse intuito, a Fact está estruturando um amplo debate, envolvendo diversos atores da sociedade civil organizada, dos primeiro e segundo setores, para a construção de uma auto-regulamentação que forneça um norte para as associações filiadas à federação e contemple toda a diversidade representada por essas organizações. 

“Ao longo dos anos, temos conduzido coletivamente pessoas em suas trajetórias pessoais para alcançarem saúde com o uso medicinal da cannabis e boas práticas. É crucial registrar que o reconhecimento da legitimidade por parte do judiciário e dos poderes públicos do modelo associativo e cooperativo de obtenção e fornecimento de derivados medicinais de plantas do gênero cannabis, consolida uma conduta pública que afirma e promove o respeito aos direitos e garantias individuais”. destaca Angela Aboim, coordenadora geral da Fact.  

O proibicionismo que se apresenta através da Guerra às Drogas, além de matar pessoas no Brasil diariamente, as impede de terem tratamento para as suas condições. Os pobres, negros e marginalizados são os que mais morrem e menos tem acesso a tratamento e estudo.

“Minha maior ressalva com este julgamento é o pedido de proteção a estes cultivos pioneiros e históricos de uso terapêutico e ancestral, ninguém aqui está falando dos povos originários e tradicionais e quero inclui-los na minha fala, entendemos que a maconha é um patrimônio terapêutico da humanidade, no quintal da minha casa ela é um patrimônio caipira, sagrado em nossa fé”, pontua a coordenadora.

Atenção ao plantio para fins industriais e terapêuticos

Na prática do cultivo, tanto de cannabis quanto de cânhamo, há particularidades específicas que precisam ser respeitadas, como princípios orgânicos. 

Enquanto o plantio medicinal depende da planta fêmea e de suas flores para a produção de remédios e medicamentos, que é a parte da planta onde se concentram os compostos químicos terapêuticos (canabinoides), a indústria do cânhamo utiliza principalmente as fibras e as sementes. 

Porém, se esses cultivos forem próximos, as plantas de cânhamo (Ruderalis) podem polinizar as plantas de cannabis (sativa e índica), transformando-as em macho,  impedindo o desenvolvimento das flores. 

“Do ponto de vista da saúde pública, os produtos de cânhamo são ecologicamente melhores que os atuais e os benefícios para todos, mas quando imaginamos um cultivo de cânhamo sendo iniciado próximo a um cultivo doméstico de maconha com uma planta desenvolvida especificamente para uma condição de uso compassivo por exemplo, ficamos perplexos de preocupação. Peço que haja um distanciamento mínimo e uma pesquisa para saber se há ou não um cultivo de cannabis terapêutica antes do início do cultivo de cânhamo e que sejam proibidos sua proximidade”, finaliza a coordenadora.

Assista abaixo a íntegra dessa audiência:

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